by maggie taylor

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Historia da vaca, do carneirinho, da gata, do bode e da burra velha.

O bode diz que não conhece a vaca, só sabe da existência de uma princesa encantada, que vive com uma gatinha.
A burra, ao arrumar o curral, encontra na albarda um ninho de ratos !
Pergunta ao bode donde vêm tantos ratos.”Não sei”, diz ele. Já tinha ajudado a pôr a albarda, mas nunca deu por nada...
A burra procura, procura, procura. Vem a saber que a vaca vive com um carneirinho e com uma gata, e que ela e o carneirinho gostam de erva. O carneirinho não sabe porém que a vaca também gosta doutras comidas, mas que só as mastiga, quando o carneirinho não está.
E a gata nada diz.
A vaca encomenda a comida pela internete e sms. Como o carneirinho não tem desconfiómetro, não percebe que quando lhe diz que vá dormir no redil da mãe é para não dividir a comida nem dar explicações e consolar-se com outros petiscos, às escondidas.
E a gata nada diz.
O bode sai para pastar, mas demora muito tempo, muito tempo e, quando volta para o curral, a burra não para de espirrar, de tossir, de coçar os olhos e esfregar o nariz, como quando lhe cheira a gato. É que o bode tem ido a casa da vaca, que ele pensa ser uma princesa encantada, e traz pelos da gata agarrados aos pés. Como é a burra que limpa o chão por onde ele anda, fica cheia de comichões.
O bode já é velho, vê mal e faz orelhas moucas ao que a burra lhe diz. “Pensas que a vaca é uma princesa encantada, transformada por uma maldição minha?” Isso é o que ele acredita, mesmo sabendo das vacas loucas, doença da qual a vaca estava acometida há muitos anos. Não quer que saibam que ele sabe que a princesa não é princesa.

Todos os outros animais da quinta sabem que a vaca é louca, e que o bode faz orelhas de mouco, porque também gosta da comidinha às escondidas. Afinal cabras e bodes até papel comem, se o virem à frente.
No curral da burra, com tantos ratos à solta, pêlos de gato e micróbios de vaca louca, fica tudo doente.Os burritos saem do curral, e a burra diz ao bode que vá sacudir os pêlos, os micróbios e a palha para outro local. “Volta quando estiveres livre desses enfados”, proclama.
A vaca continua a comer erva com o carneirinho e encomenda petiscos pela internete e por sms.
O bode tem medo que a vaca louca diga que ele tem a doença de Creutzfeldt-Jakob.
O carneirinho quando vai ao redil da mãe fica sempre desconfiado.
A gata nada diz.
E a burra tem pena do bode...

terça-feira, 14 de junho de 2011

Torre de Babel, de Zé Paupério (convidado especial do Blogue)



Tantos que se vêem da minha rua :
Ele há os alinhados, os pedantes , os isolados, os inconstantes, os idolatrados,
os ofegantes , os delicados e os hesitantes.
...Há os cantadores brilhantes, os desafinados , os criadores e os criados, mais que influenciados, os que morrem de amores, outros esfomeados ,sofredores, mais os degradados , de maus humores e os censurados.
Há ainda os estupores depravados , os mal encarados, os ditadores, mas também há os apaixonados, os madrugadores e os esperançados.
Não faltam os reaccionários , os democratas, os revolucionários ,os psicopatas,
os proletários, os vira-latas.
Há os estrangeiros já naturalizados, os gajos porreiros, os obreiros espoliados, os paneleiros ainda discriminados , os viciados e ressacados.
Há os solteiros crentes , os separados descrentes e os casados indiferentes.
Há os proxenetas descarados os incautos martirizados e há os poetas imortalizados.
No entanto daqui , da minha rua , todos me parecem muito iguais…

terça-feira, 7 de junho de 2011

tua cara no meio das gotas particulares da chuva

Os pássaros nadam no céu, os peixes voam no mar, e o fundo está acima e abaixo de ti. Tu estás no meio― uma salsicha num pão de cachorro quente com Cronos a mastigar-te com todas as iguarias que lhe aguçam o paladar- milho, ervilha, batata-palha, tempero verde picadinho. Não metes a proa, segues com o vento na fúria da proximidade céu-mar que sabes ser uma só coisa desde lá, no infinito. Tu salsicha/minhoca lentamente degustada te empenhas para permanecer no cárcere definitivo da terra. Homem isca resvala o pé e cai na água para não bater a costela. Foi para o céu? Na beira, com frio e medo, se aquieta, a trazer outra respiração, menos curta. A visão já não é turva, e molda o filho João, a mulher Isabel. Transforma a areia, aos poucos, em pássaros, casas, a Sanga com a pinguela da Vila, barcos e peixes, até as estrelas que pôde ver como se fosse dia no mar. És Deus.
Abençoado sejas, salsicha/minhoca.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Depois do jantar e uma hora complicada

O Inverno estava em casa, na casa dele, já que a casa de cada um é o lugar que deixamos.
E depois, depois do jantar é uma hora complicada, está feito, acabou, e agora ?não há desculpas ou se fica ou se vai, ou se quer ou não se quer, ou se diz ou se cala. Sem sacudir as migalhas fui para o sofá azul, o que foi o criadouro das quatro estações, chegou a casa no dia em que o verão cá chegou, depois dois dias do verão ter chegado.
Estava em casa mas de partida. Sentámo-nos no mesmo sofá, um em cada ponta. Só de estarmos os dois sentados na hora depois do jantar os olhos brilharam-me, mas não deu para ver, estávamos a olhar em frente, como se nada fosse, para o mesmo lado. Mãe, vou a Lisboa. Eu já sabia, para sentar no sofá na hora depois do jantar alguma razão havia. Eu já sabia, não ia aquecer o lugar muito tempo. Pisquei os olhos, apaguei o brilhozito, mas não deu para notar, continuava a olhar em frente. A Câmara abriu um concurso de ideias e vou concorrer, tenho de ir ver os terrenos, são dezasseis terrenos, dezasseis projectos, dezasseis prémios.
Há um prémio para cada terreno, vou concorrer aos dezasseis, pode ser que os ganhe todos.
Sorri para dentro, mas também não dava para ver mesmo que fosse para fora, continuávamos a olhar na mesma direcção, este rapaz não cresce. E vou apresentar cada um em meu nome e no nome de um amigo. Senti umas cócegas no umbigo, continua a ser um derretido, gosta de dividir as coisas boas, multiplicar ideias, somar optimismo, subtrair complicações.
Apeteceu-me pegar-lhe ao colo, dar-lhe um beijo na ponta do narizinho, o mais pequeno da família, como talvez o da minha mãe. Fiquei muda e quêda, a derreter-me.
Mas a ideia é fazer umas cenas provocadoras. Parei de me derreter, comecei a ficar curiosa, mas em vez de o demonstrar perguntei, e quanto vais gastar nessas cenas?
Não sabia, mas os prémios iam dar para cobrir. Quero pôr lá uma réplica da Casa da Música, em ponto pequeno. Eles gostam, já lá têm a réplica do Corcovado, da Golden Gate...
Essa era boa! Dei uma gargalhada, por dentro ! Gosto de provocações, embora as faça raramente, quer dizer, em grande não as quero fazer, aborrece-me aborrecer pessoas, mas das pequenas talvez faça todos os dias, não sei, ou fazia, isso sim.
Ele não ouviu a gargalhada mas talvez percebesse, porque me sentei em cima duma perna, fiquei desinquieta, foi o que foi.
Se tu tiveres alguma ideia, para alguma coisa que gostasses de ver construída em Lisboa...nessa onda provocatória, eu topo.
Aí parti-me toda. Tirei a perna de baixo do traseiro, refastelei-me de lado e perguntei : A sério? Queria ouvir qualquer parvoíce minha, dava importância às minhas maluqueiras.
Ora diz lá então, tens outros alinhavados? Tinha: um arranha céus de apartamentos T zero para arquitectos desempregados, uma casa debaixo da ponte 25 de Abril, revestida a folha de ouro para residencia oficial dos Reis de Espanha, e por aí fora.
Mudei de sofá, ficámos de esguelha, a noventa graus. Queres mesmo que te diga? Porque não fazes um prédio à maneira, com recepção tipo Grand Hyatt e terraço com vistas, com salões de chuto privados, para os que podem pagar e não se querem misturar com os pelintras, os arrumadores, os desempregados, as prostitutas baratas ?
O coração apertou, e se ele me diz que é mesmo uma palermice ou pior ainda se achar e não me disser? Queria que ficasse contente, que percebesse que eu entendia o que lhe ia na cabeça cheia de caracóis.
Senti um friinho por baixo das gémeas, enquanto o via mudar os pontos de apoio de um para o outro lado, empurrando os óculos para cima. Essa é boa !
E foi à vida.Depois do jantar, mas já depois da hora depois do jantar sacudi a toalha, e acabei a noite em paz.
Fez esses todos mais uma prisão para dirigentes desportivos com dezoito andares. Acho que é o número de clubes na primeira divisão. E uma clínica de luxo com dois edificios separados por uma alameda, de um lado Maternidade e Planeamento Familiar e no outro Interrupção Voluntária da Gravidez, que Aborto é para indigentes, e já nem sei que mais.
Passa o tempo passa. Esqueci-me dessa hora depois do jantar, porque outras horas na cabeça me foram perturbando os pensamentos e as horas depois de jantar.
O concurso, esse foi andando, e dos dezasseis prémios só recebeu um, com a sala de chuto. Foi projectada para um terreno vazio em frente à Assembleia da República, fachada em espelho onde a tal era reflectida, não sei se perceberam a ideia. E com um terraço com vistas, para os fumadores, porque tabaco lá dentro nem pensar.
Cerimónia da entrega, mesa redonda com o Goulão e o Padre Maia, entrevistas para aqui e acoli. Levaram a coisa a sério! Fala disto e daquilo, das ONGs e das IPSS e do trabalho que é preciso fazer e acontecer. Mas faltam os euros para construir as tais salas de chuto para os pobrezinhos. Ai ele é isso? Provocação vai, provocação vem, propõe ao Padre que seja ele a vender a droga, assim já tem euros para as salas, que se deixe de trêtas, ou vai comprar onde?
Ó mãe não sejas tão maluca, achas? olha eu não acho nada, aquilo foi uma brincadeira séria e agora é uma brincadeira brincadeira? Aí levantei o sobrolho mesmo, só um, o que dá um ar mais mafarricóide, tipo Jack Nicholson no feminino.
Bem, da sala de chuto passaram à encomenda de uma escola para um Musseque em Luanda. Ainda não o pagaram, nem a querem fazer, melhor ainda até pagam para que não se faça mas isso é outra história, desconfio que ainda vai ser ele a pagar a escola, com a ajuda do Sr. 50. E os Musseques passaram a tema para o mestrado e para o doutoramento. E a sala de chuto para ricaços valeu o prémio da American Architects Assotiation, e eu apareci de surpresa para a cerimónia da entrega, aí confesso que com um sorriso de orelha a orelha por dentro e por fora.
E hoje, quando vinha através da chuva desenfreada regressar a casa, o lugar que deixei, fiquei a pensar como pequenos momentos podem alterar a nossa vida. E como pequenas coisas nos podem modificar. E eu sem dar conta. E eu a dar conta. Bem sei que já na ida eu ia a magicar, muito. E fico a pensar quantas vezes pisquei os olhos para apagar um brilho, quantas vezes só sorri para dentro, quantas vezes cruzei os braços para disfarçar um frio nas gémeas, umas cócegas no umbigo.

Porto, 28 e 29 de Novembro de 2010..

quinta-feira, 2 de junho de 2011

A Obra de Anselmo

(Affff...consegui, finalmente)

Certamente, como todos nós, Anselmo tinha uma história. Provavelmente um casamento de 15 anos que terminou sem deixar outros frutos que algumas frustrações e dois ou três bons momentos – quando ganhou 300 reais ao acertar no bicho com a data do aniversário de sua esposa e os dois comemoram comendo um risoto de camarão, quando se mudaram para a casa após uma reforma de 8 meses e estrearam a banheira de hidromassagem e... fiquemos com dois, não lembraria o terceiro. Para ser franco, Anselmo não se lembrava de nada, não por alguma amnésia de causas fisiológicas ou nervosas. Simplesmente porque havia já 3 meses que estava obcecado por seu novo empreendimento. Estava empenhado em reunir a quinta palavra da décima primeira linha de cada página impar dos relatórios que diariamente chegavam a sua mesa para analisar. No início, embora remontar ao início não fosse mais possível para Anselmo, encontrava naquela sistemática uma mera distração para descansar do tédio que os relatórios lhe propiciavam. Em cinco anos analisando relatórios de segurança de produção da fábrica de parafusos, o momento mais emocionante foi quando precisaram revisar os procedimentos de segurança depois que um funcionário perdera a unha do dedão da mão esquerda e conseguira uma razoável indenização, mesmo que, na opinião de Anselmo, aquele incidente não tivesse sido decorrente senão de sua própria distração. Não gostava do sujeito e no íntimo desejava que tivesse perdido todo o dedo, mas logo se recriminava por tamanha crueldade. A lúdica distração ocupava-lhe apenas alguns minutos ao final do expediente e, em circunstâncias normais, não seria digna de nota. Outros rodopiavam uma moeda sobre a escrivaninha, outros bebiam café freneticamente e havia ainda os que se distraíam com a nova fotocopiadora da Xerox. Ninguém se importava com as pequenas manias alheias que nada mais eram que alheias. Mantidas nas devidas proporções são absolutamente toleráveis em qualquer ambiente de trabalho sadio. O primeiro a notar que a mania de Anselmo começava a romper o limiar das devidas proporções foi Oscar, colega de mesa com quem ia às quintas-feiras tomar uma cerveja rápida e asséptica após o expediente em que quase sempre terminavam comentando a anedota da unha. Concluíam que tinha sido distração do acidentado e que a vítima – como gostavam de chamá-lo ironicamente – não deveria ter recebido a indenização, no máximo uma visita de uma manicure. Oscar notou o fato quando Anselmo passou a faltar a seu encontro com certa regularidade. A princípio atribui a ausência a um aumento da carga de trabalho e achou até mesmo louvável a dedicação do colega. Com o tempo, porém, estranhou o fato de não haver qualquer incidente maior que pudesse justificar a sobrecarga. Não quis perguntar, a confiança entre os dois não alcançava tais patamares, mas um dia, quando Anselmo deixou sua mesa para pegar um café, Oscar se aproximou do escritório do colega e leu as seguintes palavras: “Dos procedimentos concêntrico precauções". Como sua especialidade era RH, não ousou questionar o sentido da sentença, mas douto em gramática, tinha certeza que faltava algum verbo, predicado ou algum elemento de ligação. Na certa, Anselmo teria seus próprios códigos para compreender a frase. Deixou ali o tema. Anselmo, porém, novamente ausentou-se do compromisso na semana seguinte. Essa quinta-feira foi, aliás, a primeira em que não voltaria para casa, dormiria no escritório ajeitando-se entre uma poltrona para visitantes e sua cadeira. Para sua sorte, o zelador era o primeiro a abrir o prédio e o acordou antes da chegada do restante do pessoal. O zelador era um sujeito discreto e o acordou como quem acende uma luz, acomoda uma mesa mal posicionada ou, ainda, retira uma teia de aranha dessas que todos os dias insistem em surgir mesmo com sua esforçada limpeza. A discrição do zelador agradou Anselmo, pois o dispensou de qualquer explicação, até mesmo porque não a tinha, apenas ergueu o bloco de papel em que rosca, usinagem, parada e molde se uniam em uma oração que frustrava todas as suas expectativas de encontrar alguma lógica. É mister esclarecer que Anselmo não via sentido naquelas orações e não retirava delas senão frustrações. Mais de uma vez, após algumas horas de escrutínio atento e abnegadas anotações, lançava seu bloco pelos ares, praguejando e jurando a si mesmo que não voltaria a perder tempo com tão estúpida tarefa.
Se a retomava dia após dia, era porque a noite retumbava inquieta em seu travesseiro aquela frase que de distração pueril fez daquele hábito obsessão: “Espanada a vida, restam apenas gestos". Toda sua vida julgara-se um homem lógico e bastante agnóstico. Relutava em aceitar as explicações fáceis para os fatos inusitados e, mesmo quando não as encontrava, considerava que a ciência, com um pouco de inferências, poderia oferecê-las a qualquer homem de bom siso. Por isso, quando ao final do expediente, distraidamente juntou a quinta palavra da décima primeira linha de cada página ímpar das doze que compunham o azucrinante relatório como fazia já havia alguns dias, encontrou em tamanha sentença algo que, mesmo com todo seu ceticismo, não pôde julgar mera coincidência. Espanada a vida, restam apenas gestos. Era um sinal, mesmo ele deveria reconhecê-lo. Um jogo frívolo como aquele, cuja única regra consistia em reunir palavras a esmo extraídos de relatórios tão prosaicos e tão pouco propícios à poesia, não poderia render uma mensagem tão clara. Espanada a vida, restam apenas gestos. Aquela noite não dormiu.
Depois da fatídica frase, outras menos significativas se sucederam, mas que, talvez pela disposição benevolente que segue a toda euforia, conservavam, no entender de Anselmo, alguma lógica. Assim foi que frases como “Afastamento observar forja aleatória”, naqueles primeiros tempos ainda não lhe pareciam inteiramente descabidas. Aferrava-se à esperança de que um sentido oculto se insinuasse ali e que, somente com o fórmico labor muitas vezes incompreendido dos homens de visão, poderia revelar no futuro. Lera certa vez que seria matematicamente possível combinar as palavras de um dicionário ao acaso para que formassem a obra completa de Shakespeare. Embora a probabilidade fosse remotíssima, existia. Se a obra completa de Shakespeare poderia surgir do acaso, porque não sua frase de efeito de livro de autoajuda? Ainda assim, dia após dia, procurava ansioso a revelação e não encontrava mais que um encadeamento insensato de palavras inexpressivas.
A esta altura, Anselmo mal dormia, deixava o escritório de madrugada ou nem sequer o deixava, escrutinando relatórios antigos, em busca de combinações que lhe fornecessem novo alento. Oscar já arrumara um novo parceiro para a cerveja das quintas, durante a qual falavam, como sempre, da anedota da unha, e agora também da pouca lealdade de Anselmo, quem sem qualquer justificativa razoável já nem lhe dirigia a palavra. Concluíam que o episódio da unha tinha sido um grande exagero e que Anselmo sempre fora um tanto estranho. Numa das quintas, Oscar até relembrou com alguma imprecisão a enigmática frase, sabia que envolvia palavras como concêntrico, procedimentos ou algo assim. Mas o que mais gerava comentários maliciosos sobre Anselmo era sua súbita amizade com Edélson. Edélson era desde sempre um grande motivo de chacotas na empresa, por ser muito reservado, mas principalmente por mostrar um comportamento algo afeminado. Jamais se comprovara nada a respeito, mas Edélson não tinha mulher, nunca falava sobre elas, não frequentava os churrascos de fim de ano e tinha um gestual excessivamente afetado. Na verdade, era de se esperar o nascimento daquela amizade, palavra que Oscar pronunciava com um velado sorriso entre gole e gole.
As verdadeiras motivações de Anselmo, no entanto, em nada se aproximavam das conotações sorridentes das quintas-feiras. Edélson era o sujeito responsável pela elaboração dos relatórios que posteriormente recebiam a revisão e aprovação de Anselmo. Cansado de semanas de orações inexpressivas com termos como usinagem, metodologia, controle, periodicidade, restrito, paletes, entre outras, decidiu, depois de alguma hesitação, procurar Edélson. Este o recebera, a princípio com desconfiança – decerto seria uma nova brincadeira de seus colegas –, mas logo viu no interesse pelos relatórios um sinal de franqueza. Assim foi que passaram a almoçar juntos e até mesmo fazer alguns serões discutindo o tema da segurança na empresa. Decidido a respeitar o seu jogo, Anselmo em momento algum tentou exercer uma influência direta sobre a escrita dos relatórios. Tinha, no entanto, a esperança de que com uma convivência mais intensa pudesse fazer com que o autor dos relatórios empregasse termos mais convenientes a seu empreendimento literário. Aos poucos, sempre respeitando a regra do jogo e sem interferir diretamente na redação dos relatórios, passou a acompanhar este processo de perto e desenvolver técnicas de contagem rápida das linhas e palavras para eventualmente sugerir tacitamente mudanças estratégicas no texto. A alta gerência, ao contrário dos maliciosos colegas, via naquela aproximação um fato muito positivo, pois qualquer esforço era válido para ampliar o recorde de sete anos oficiais sem incidentes graves – nove anos na secreta opinião de todos, que relutavam em aceitar o parecer dos auditores externos sobre a gravidade do acidente da unha. Um memorando oficial circulou reconhecendo, sem citar nomes para evitar embaraços, o empenho de alguns funcionários do setor de controle de riscos para manter os invejados índices da companhia. Carece dizer o quanto Oscar e seu novo parceiro riram na quinta-feira da semana em que circulou dito memorando dos funcionários que “demonstravam tão louvável empenho”.
Anselmo, alheio a qualquer galardão ou aos comentários, mergulhava cada vez mais no escrutínio dos relatórios e começava a sentir os primeiros resultados de sua aproximação a Edélson. Algumas insinuantes frases como “Sistemas ocultam sentido eficiência vida” davam um novo alento e indicavam que estava no caminho certo, embora ainda precisasse realizar alguns ajustes em sua técnica de contagem rápida de linhas e palavras, bem como apurar seus esforços para ampliar o vocabulário de Edélson. O acaso novamente o favoreceu e fez do aniversário de Edélson uma ocasião para dar-lhe de presente uma edição comentada com capa dura da Divina Comédia. Edélson agradeceu tentando conter embaraçosas lágrimas e explicou que era a primeira vez que um amigo lhe presenteava com um livro. A cena obviamente não escapou às conversas cada vez mais peçonhentas das quintas-feiras de Oscar, quem movido por uma enorme inveja, pois jamais ganhara um livro de Anselmo ou de amigo algum, começava já a inventar episódios pitorescos a respeito daquela amizade. Foi assim que o aperto de mão tornou-se, nas palavras de Oscar, um demorado abraço em pleno local de trabalho, que, fosse ele o gerente local, justificaria duras reprimendas.
Com o tempo, Anselmo passou a sentir que, a despeito dos grandes avanços em seus novos achados nos relatórios, precisaria tomar outras atitudes. Motivado por uma entrevista que ouvira no rádio com um grande especialista, William Pollard ou nome semelhante, quem afirmava categoricamente que se estamos insatisfeitos com o caminho não basta imaginar um novo fim, mas sim mudar o caminho, decidiu investir em algo mais drástico. Aproveitando as quietas madrugadas na empresa passou a passear munido com a cópia de alguns relatórios pelas instalações de produção. Observava minuciosamente cada uma das máquinas, verdadeiros titãs adormecidos e inofensivos na alva, à espera de que o sol saísse e se abrissem as portas da cruel arena para reluzir seus mecânicos músculos, estudando cada um de suas engrenagens. Procurou no departamento de arquivos da companhia o manual de cada uma das máquinas e passou a estudar em detalhes o seu funcionamento, dedicando especial atenção à seção de riscos e advertências de segurança. Oscar, obcecado com o comportamento cada vez mais incongruente de seu antigo parceiro de quintas-feiras, observou os livros de engenharia mecânica dispostos na mesa de Anselmo e comentou o fato na quinta-feira seguinte, sem conseguir, no entanto, tecer qualquer comentário ou ilação sobre aquele interesse repentino de Anselmo por livros que em muito escapavam a sua alçada.
Em poucas semanas Anselmo possuía um conhecimento digno de peritos sobre o funcionamento do processo de usinagem, rosqueamento, dosagem e distribuição, empacotamento entre outros elos menores da linha de produção. Agora, o passo seguinte era só uma questão de momento.

A fatalidade foi recebida com imenso pesar por todos na companhia. Alguns se compungiam pelo falecimento de um colega, outros renovavam o receio por sua própria vida, a alta gerência lamentava o fim do recorde, enquanto o financeiro e o jurídico faziam cálculos e traçavam estratégias para evitar a quebra da companhia. Anselmo em sua mesa, exaurido ao máximo, analisava o último relatório que lhe chegaria, pois a partir do próximo, todo relatório seria encaminhado diretamente ao departamento jurídico para análise dos gerentes seniores e advogados da companhia. Toda informação seria, a partir de então, tratada com elevado grau de confidencialidade. Anselmo sabia que este relatório era sua última oportunidade e o recebeu com uma excitação que espantou seus colegas, pois destoava do clima de pesar da empresa. Sem importar-se com os olhares de reproche, debruçou-se sobre o relatório mais gordo que o habitual. As primeiras perícias indicavam uma causa desconhecida que, no entanto, davam margem à hipótese de sabotagem. Não havia ainda maiores indícios, porém o óbito de um funcionário com um histórico exemplar, sem qualquer incidente de natureza alguma, quer fosse de conduta ou procedimental, fugia aos comportamentos-padrão esperados, etc., etc., a companhia de seguro já fora acionada e enviaria com máxima prioridade seus peritos para uma análise mais detalhada que pudesse fornecer evidências da sabotagem e seus possíveis autores. Corriam na empresa inúmeros rumores, sobre crime provocado pela concorrência, a possibilidade de fechamento da unidade, à chegada de um alto funcionário da matriz, demissões em massa e reestruturação de pessoal. Nada disso, no entanto, era capaz de afetar o humor de Anselmo que devorava o relatório página ímpar por página ímpar, décima primeira linha, quinta palavra, nenhuma, dor, maior, que, recordar-se, do, tempo, próspero, na, crise. Nenhuma dor maior que recordar-se do tempo próspero na crise. Nenhuma dor maior que recordar-se do tempo feliz na miséria... Os meses de árduo labor, finalmente recompensados, todas aquelas páginas preenchidas com palavras insignificantes ganhavam sentido agora, eram o estofo de uma grande obra – nem Shakespeare nem Dante poderiam o mesmo que o Acaso – e iam de uma vida espanada em que não restam mais que gestos à dor da lembrança de tempos felizes na hora da dor. Estava ali seu legado, lesse quem quisesse, entendesse quem pudesse, sua vida ganhava sentido no exato momento em que engravatados senhores de finíssimos ternos se aproximavam diante dos atônitos olhares de Oscar, Edélson, Geraldo, Elzira, Fagundes, acompanhados por dois policiais civis confusos e constrangidos. Algemas, sirenes, câmeras, flashes, notícias, incompreensão e indignação pública, um homem de vida exemplar, quais seriam suas motivações, a grande obra estava enfim escrita.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Mulher sentada com maçãs

Moça, moça, moça...

Sensualidade remexida com dor, tesão e
ausência temperada com presença.

Moça, moça, moça...

Mancha de mofo na parede, a liberdade
absoluta. Ali, sim, tudo pode ser.

Com pressa ou sem pressa.
Roberto Silva

Ela mudou-se para uma casa numa colina. Tinha poucos móveis, e não dividia com ninguém a ausência das coisas mais necessárias ao conforto. Era compensada a cada vez que se dirigia ao bem cuidado pomar de macieiras nos fundos da casa. E foi uma felicidade a descida ao poço do Gastão para buscar água, a sentir as sarjetas e o barro.  Ria-se― um grande buraco na cara cheio de dentes brilhantes como a jarra de latão que areava. E ali, junto ao poço, o corpo se estendeu nu em tudo o que os grandes pés tocaram.  Gastão, Gastão, ela sussurrou com a boca que, no vai e vem sobre o corpo, lhe tocou as bochechas, a orelha, até cair muda no capim. Voltou para casa e escancarou bem a porta da cozinha para entrar toda luz do dia. Sovou pão de centeio, misturado com batata doce cozida, porque dava umidade e peso. Às vezes, juntava trigo com farinha de milho.
Depois do jantar, apertava o lábio inferior devido ao estremecimento que lhe percorria as tripas- e nem era de frio, porque Gastão vinha se deitar com ela. Até o dia em que as paredes do quarto, cheias de pressa, que passaram de marrom para a volúpia do vermelho, desembocaram num recinto negro, negro mesmo, para o qual ela virou as costas resignada. Gastão morreu, quase no fim da colheita, num dia de maio.
Decidida, acomodou-se na cama, tirando da terra os grandes pés. Manteve duas maças ao colo. Desbotou com elas, e a boca se desfez numa profunda inanição como uma pintura que algum artista tivesse lhe abandonado a face.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

A vida em caixas

Dentro de algumas semanas comemoro o sexto aniversário da minha abertura da CAIXA da Pandora.
Pensava que era apenas uma lenda grega, mas não, é real, só que no meu caso quando abri a CAIXA deixei, como na lenda, que todos os males se soltassem, mas não fui a tempo de guardar a esperança. Mas tenho atenuantes: nunca houve um Epimeteu que me avisasse que não a devia abrir.
Ainda agora, ao fim de tanto tempo, continuo à procura da CAIXA preta, que possa revelar o que de facto aconteceu.
Às vezes fico a tentar abrir uma CAIXA de diálogo, tempo perdido.
Essas CAIXAS não faziam parte de uma colecção de CAIXAS que já tive, e talvez ainda tenha, mas assim de repente não sei onde estão. Não sei como começou, mas fui juntando CAIXAS de bolachas das freiras de Santo Tirso ou lá para a beira, CAIXAS de bombons Regina, CAIXAS de sabonetes Confiança , CAIXAS de pó de arroz Madeiras do Oriente, CAIXAS de creme Bela Aurora, CAIXAS de pastilhas de mentol, CAIXAS de terços benzidos, CAIXAS de rapé, CAIXAS de fósforos, CAIXAS de latão, de estanho, de cartão, de prata, de tecido, de papier maché, de marfim, de alabasto, de vidro, de cristal, CAIXAS grandes , pequenas, feias, bonitas, pirosas, CAIXAS dadas, compradas, roubadas.
Enquanto estavam cheias não eram de colecção, só quando ficavam vazias tinham direito a essa classificação. Depois já podiam voltar a ser cheias, serviam para guardar coisas miúdas, botões, fivelas, colares rebentados, sobras de rendas, amostras de croché, amostras de tricô, clips tortos, pioneses sem espigão, missangas e lantejoulas, lápis sem bico, esferográficas com carga seca, canetas sem tampa, tampas sem canetas.
Algumas, as mais vistoas, nunca tinham servido para nada, nunca foram cheias. Na realidade, pensando bem, eram umas autênticas inúteis, não tinham nada dentro, terão sido feitas para decorar, mas na realidade o que faziam era estorvar e atrapalhar o uso das mesas ou móveis onde as CAIXAS estavam colocadas,
Essas fui-as arrumando umas dentro das outras, dentro de gavetas, das gavetas para os armários, dos armários para a garagem, a tal que ainda não consegui arrumar.
Nunca consegui deitá-las fora, embora ocupem um espaço que podia ser melhor utilizado. Esqueço-me delas, mas de repente, quando vou procurar alguma coisa, tropeço nelas.
Quando a garagem ficar arrumada de certeza que essas CAIXAS vão sair de cá de casa.
Das outras, as que estão cheias de pioneses sem cabeça, botões velhos, amostras de croché, ainda não vou conseguir desfazer-me.
Mas há muitas mais CAIXAS na minha colecção, (já me têm dito que sou uma CAIXA de surpresas, embora desconfie que não é grande elogio): já fui médica da CAIXA, às vezes não dou duas para a CAIXA, costumava andar sempre a toque de CAIXA, (isso era no tempo em que era Amélia) mas agora acalmei. Outras vezes é a minha cabeça que é uma CAIXA de ressonância!
Há tempos descobri que não via nada do que se passava ao perto, e há alguns meses descobri que também não via bem ao longe, foi então que me tornei uma CAIXA de óculos.
Por vezes a CAIXA de ar queixa-se, mas eu não ligo.
Quando era pequena gostava de ser CAIXA de um banco, pensava que eram pessoas que davam dinheiro a quem pedia, santa inocência. Também gostava de ouvir o barulho das moedas a caírem na CAIXA de esmolas da igreja, no mês de Maria, quando ficava hipnotizada pelas ladainhas em latim.
E o meu primeiro ordenado depositei-o na CAIXA, já lá vão 36 anitos.Continuo cliente da CAIXA, e agora vou passar a receber a reforma, na CAIXA.
Desde que tenho um Prius com CAIXA automática, não consigo guiar um carro de CAIXA manual! E pensar que durante 25 anos passei os dias a meter mudanças.
Nunca dei grande importância à CAIXA do correio, até porque pouco ou nenhum correio recebia, daquele que teria gostado de receber. Com o aparecimento da net, e suas CAIXAS de correio electrónico, descobri como é fácil com um clique enviar, receber, reencaminhar e responder, e como é mais difícil excluir definitivamente.
Agora, para adormecer a Rosa, que me diz ao ouvido avó, tu és fantástica, vou dar corda à CAIXA de música que o Inverno lhe ofereceu.


30-01-2010, Lua Cheia (Manuela Silva)