by maggie taylor

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Mulher sentada com maçãs

Moça, moça, moça...

Sensualidade remexida com dor, tesão e
ausência temperada com presença.

Moça, moça, moça...

Mancha de mofo na parede, a liberdade
absoluta. Ali, sim, tudo pode ser.

Com pressa ou sem pressa.
Roberto Silva

Ela mudou-se para uma casa numa colina. Tinha poucos móveis, e não dividia com ninguém a ausência das coisas mais necessárias ao conforto. Era compensada a cada vez que se dirigia ao bem cuidado pomar de macieiras nos fundos da casa. E foi uma felicidade a descida ao poço do Gastão para buscar água, a sentir as sarjetas e o barro.  Ria-se― um grande buraco na cara cheio de dentes brilhantes como a jarra de latão que areava. E ali, junto ao poço, o corpo se estendeu nu em tudo o que os grandes pés tocaram.  Gastão, Gastão, ela sussurrou com a boca que, no vai e vem sobre o corpo, lhe tocou as bochechas, a orelha, até cair muda no capim. Voltou para casa e escancarou bem a porta da cozinha para entrar toda luz do dia. Sovou pão de centeio, misturado com batata doce cozida, porque dava umidade e peso. Às vezes, juntava trigo com farinha de milho.
Depois do jantar, apertava o lábio inferior devido ao estremecimento que lhe percorria as tripas- e nem era de frio, porque Gastão vinha se deitar com ela. Até o dia em que as paredes do quarto, cheias de pressa, que passaram de marrom para a volúpia do vermelho, desembocaram num recinto negro, negro mesmo, para o qual ela virou as costas resignada. Gastão morreu, quase no fim da colheita, num dia de maio.
Decidida, acomodou-se na cama, tirando da terra os grandes pés. Manteve duas maças ao colo. Desbotou com elas, e a boca se desfez numa profunda inanição como uma pintura que algum artista tivesse lhe abandonado a face.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

A vida em caixas

Dentro de algumas semanas comemoro o sexto aniversário da minha abertura da CAIXA da Pandora.
Pensava que era apenas uma lenda grega, mas não, é real, só que no meu caso quando abri a CAIXA deixei, como na lenda, que todos os males se soltassem, mas não fui a tempo de guardar a esperança. Mas tenho atenuantes: nunca houve um Epimeteu que me avisasse que não a devia abrir.
Ainda agora, ao fim de tanto tempo, continuo à procura da CAIXA preta, que possa revelar o que de facto aconteceu.
Às vezes fico a tentar abrir uma CAIXA de diálogo, tempo perdido.
Essas CAIXAS não faziam parte de uma colecção de CAIXAS que já tive, e talvez ainda tenha, mas assim de repente não sei onde estão. Não sei como começou, mas fui juntando CAIXAS de bolachas das freiras de Santo Tirso ou lá para a beira, CAIXAS de bombons Regina, CAIXAS de sabonetes Confiança , CAIXAS de pó de arroz Madeiras do Oriente, CAIXAS de creme Bela Aurora, CAIXAS de pastilhas de mentol, CAIXAS de terços benzidos, CAIXAS de rapé, CAIXAS de fósforos, CAIXAS de latão, de estanho, de cartão, de prata, de tecido, de papier maché, de marfim, de alabasto, de vidro, de cristal, CAIXAS grandes , pequenas, feias, bonitas, pirosas, CAIXAS dadas, compradas, roubadas.
Enquanto estavam cheias não eram de colecção, só quando ficavam vazias tinham direito a essa classificação. Depois já podiam voltar a ser cheias, serviam para guardar coisas miúdas, botões, fivelas, colares rebentados, sobras de rendas, amostras de croché, amostras de tricô, clips tortos, pioneses sem espigão, missangas e lantejoulas, lápis sem bico, esferográficas com carga seca, canetas sem tampa, tampas sem canetas.
Algumas, as mais vistoas, nunca tinham servido para nada, nunca foram cheias. Na realidade, pensando bem, eram umas autênticas inúteis, não tinham nada dentro, terão sido feitas para decorar, mas na realidade o que faziam era estorvar e atrapalhar o uso das mesas ou móveis onde as CAIXAS estavam colocadas,
Essas fui-as arrumando umas dentro das outras, dentro de gavetas, das gavetas para os armários, dos armários para a garagem, a tal que ainda não consegui arrumar.
Nunca consegui deitá-las fora, embora ocupem um espaço que podia ser melhor utilizado. Esqueço-me delas, mas de repente, quando vou procurar alguma coisa, tropeço nelas.
Quando a garagem ficar arrumada de certeza que essas CAIXAS vão sair de cá de casa.
Das outras, as que estão cheias de pioneses sem cabeça, botões velhos, amostras de croché, ainda não vou conseguir desfazer-me.
Mas há muitas mais CAIXAS na minha colecção, (já me têm dito que sou uma CAIXA de surpresas, embora desconfie que não é grande elogio): já fui médica da CAIXA, às vezes não dou duas para a CAIXA, costumava andar sempre a toque de CAIXA, (isso era no tempo em que era Amélia) mas agora acalmei. Outras vezes é a minha cabeça que é uma CAIXA de ressonância!
Há tempos descobri que não via nada do que se passava ao perto, e há alguns meses descobri que também não via bem ao longe, foi então que me tornei uma CAIXA de óculos.
Por vezes a CAIXA de ar queixa-se, mas eu não ligo.
Quando era pequena gostava de ser CAIXA de um banco, pensava que eram pessoas que davam dinheiro a quem pedia, santa inocência. Também gostava de ouvir o barulho das moedas a caírem na CAIXA de esmolas da igreja, no mês de Maria, quando ficava hipnotizada pelas ladainhas em latim.
E o meu primeiro ordenado depositei-o na CAIXA, já lá vão 36 anitos.Continuo cliente da CAIXA, e agora vou passar a receber a reforma, na CAIXA.
Desde que tenho um Prius com CAIXA automática, não consigo guiar um carro de CAIXA manual! E pensar que durante 25 anos passei os dias a meter mudanças.
Nunca dei grande importância à CAIXA do correio, até porque pouco ou nenhum correio recebia, daquele que teria gostado de receber. Com o aparecimento da net, e suas CAIXAS de correio electrónico, descobri como é fácil com um clique enviar, receber, reencaminhar e responder, e como é mais difícil excluir definitivamente.
Agora, para adormecer a Rosa, que me diz ao ouvido avó, tu és fantástica, vou dar corda à CAIXA de música que o Inverno lhe ofereceu.


30-01-2010, Lua Cheia (Manuela Silva)