by maggie taylor

quinta-feira, 2 de junho de 2011

A Obra de Anselmo

(Affff...consegui, finalmente)

Certamente, como todos nós, Anselmo tinha uma história. Provavelmente um casamento de 15 anos que terminou sem deixar outros frutos que algumas frustrações e dois ou três bons momentos – quando ganhou 300 reais ao acertar no bicho com a data do aniversário de sua esposa e os dois comemoram comendo um risoto de camarão, quando se mudaram para a casa após uma reforma de 8 meses e estrearam a banheira de hidromassagem e... fiquemos com dois, não lembraria o terceiro. Para ser franco, Anselmo não se lembrava de nada, não por alguma amnésia de causas fisiológicas ou nervosas. Simplesmente porque havia já 3 meses que estava obcecado por seu novo empreendimento. Estava empenhado em reunir a quinta palavra da décima primeira linha de cada página impar dos relatórios que diariamente chegavam a sua mesa para analisar. No início, embora remontar ao início não fosse mais possível para Anselmo, encontrava naquela sistemática uma mera distração para descansar do tédio que os relatórios lhe propiciavam. Em cinco anos analisando relatórios de segurança de produção da fábrica de parafusos, o momento mais emocionante foi quando precisaram revisar os procedimentos de segurança depois que um funcionário perdera a unha do dedão da mão esquerda e conseguira uma razoável indenização, mesmo que, na opinião de Anselmo, aquele incidente não tivesse sido decorrente senão de sua própria distração. Não gostava do sujeito e no íntimo desejava que tivesse perdido todo o dedo, mas logo se recriminava por tamanha crueldade. A lúdica distração ocupava-lhe apenas alguns minutos ao final do expediente e, em circunstâncias normais, não seria digna de nota. Outros rodopiavam uma moeda sobre a escrivaninha, outros bebiam café freneticamente e havia ainda os que se distraíam com a nova fotocopiadora da Xerox. Ninguém se importava com as pequenas manias alheias que nada mais eram que alheias. Mantidas nas devidas proporções são absolutamente toleráveis em qualquer ambiente de trabalho sadio. O primeiro a notar que a mania de Anselmo começava a romper o limiar das devidas proporções foi Oscar, colega de mesa com quem ia às quintas-feiras tomar uma cerveja rápida e asséptica após o expediente em que quase sempre terminavam comentando a anedota da unha. Concluíam que tinha sido distração do acidentado e que a vítima – como gostavam de chamá-lo ironicamente – não deveria ter recebido a indenização, no máximo uma visita de uma manicure. Oscar notou o fato quando Anselmo passou a faltar a seu encontro com certa regularidade. A princípio atribui a ausência a um aumento da carga de trabalho e achou até mesmo louvável a dedicação do colega. Com o tempo, porém, estranhou o fato de não haver qualquer incidente maior que pudesse justificar a sobrecarga. Não quis perguntar, a confiança entre os dois não alcançava tais patamares, mas um dia, quando Anselmo deixou sua mesa para pegar um café, Oscar se aproximou do escritório do colega e leu as seguintes palavras: “Dos procedimentos concêntrico precauções". Como sua especialidade era RH, não ousou questionar o sentido da sentença, mas douto em gramática, tinha certeza que faltava algum verbo, predicado ou algum elemento de ligação. Na certa, Anselmo teria seus próprios códigos para compreender a frase. Deixou ali o tema. Anselmo, porém, novamente ausentou-se do compromisso na semana seguinte. Essa quinta-feira foi, aliás, a primeira em que não voltaria para casa, dormiria no escritório ajeitando-se entre uma poltrona para visitantes e sua cadeira. Para sua sorte, o zelador era o primeiro a abrir o prédio e o acordou antes da chegada do restante do pessoal. O zelador era um sujeito discreto e o acordou como quem acende uma luz, acomoda uma mesa mal posicionada ou, ainda, retira uma teia de aranha dessas que todos os dias insistem em surgir mesmo com sua esforçada limpeza. A discrição do zelador agradou Anselmo, pois o dispensou de qualquer explicação, até mesmo porque não a tinha, apenas ergueu o bloco de papel em que rosca, usinagem, parada e molde se uniam em uma oração que frustrava todas as suas expectativas de encontrar alguma lógica. É mister esclarecer que Anselmo não via sentido naquelas orações e não retirava delas senão frustrações. Mais de uma vez, após algumas horas de escrutínio atento e abnegadas anotações, lançava seu bloco pelos ares, praguejando e jurando a si mesmo que não voltaria a perder tempo com tão estúpida tarefa.
Se a retomava dia após dia, era porque a noite retumbava inquieta em seu travesseiro aquela frase que de distração pueril fez daquele hábito obsessão: “Espanada a vida, restam apenas gestos". Toda sua vida julgara-se um homem lógico e bastante agnóstico. Relutava em aceitar as explicações fáceis para os fatos inusitados e, mesmo quando não as encontrava, considerava que a ciência, com um pouco de inferências, poderia oferecê-las a qualquer homem de bom siso. Por isso, quando ao final do expediente, distraidamente juntou a quinta palavra da décima primeira linha de cada página ímpar das doze que compunham o azucrinante relatório como fazia já havia alguns dias, encontrou em tamanha sentença algo que, mesmo com todo seu ceticismo, não pôde julgar mera coincidência. Espanada a vida, restam apenas gestos. Era um sinal, mesmo ele deveria reconhecê-lo. Um jogo frívolo como aquele, cuja única regra consistia em reunir palavras a esmo extraídos de relatórios tão prosaicos e tão pouco propícios à poesia, não poderia render uma mensagem tão clara. Espanada a vida, restam apenas gestos. Aquela noite não dormiu.
Depois da fatídica frase, outras menos significativas se sucederam, mas que, talvez pela disposição benevolente que segue a toda euforia, conservavam, no entender de Anselmo, alguma lógica. Assim foi que frases como “Afastamento observar forja aleatória”, naqueles primeiros tempos ainda não lhe pareciam inteiramente descabidas. Aferrava-se à esperança de que um sentido oculto se insinuasse ali e que, somente com o fórmico labor muitas vezes incompreendido dos homens de visão, poderia revelar no futuro. Lera certa vez que seria matematicamente possível combinar as palavras de um dicionário ao acaso para que formassem a obra completa de Shakespeare. Embora a probabilidade fosse remotíssima, existia. Se a obra completa de Shakespeare poderia surgir do acaso, porque não sua frase de efeito de livro de autoajuda? Ainda assim, dia após dia, procurava ansioso a revelação e não encontrava mais que um encadeamento insensato de palavras inexpressivas.
A esta altura, Anselmo mal dormia, deixava o escritório de madrugada ou nem sequer o deixava, escrutinando relatórios antigos, em busca de combinações que lhe fornecessem novo alento. Oscar já arrumara um novo parceiro para a cerveja das quintas, durante a qual falavam, como sempre, da anedota da unha, e agora também da pouca lealdade de Anselmo, quem sem qualquer justificativa razoável já nem lhe dirigia a palavra. Concluíam que o episódio da unha tinha sido um grande exagero e que Anselmo sempre fora um tanto estranho. Numa das quintas, Oscar até relembrou com alguma imprecisão a enigmática frase, sabia que envolvia palavras como concêntrico, procedimentos ou algo assim. Mas o que mais gerava comentários maliciosos sobre Anselmo era sua súbita amizade com Edélson. Edélson era desde sempre um grande motivo de chacotas na empresa, por ser muito reservado, mas principalmente por mostrar um comportamento algo afeminado. Jamais se comprovara nada a respeito, mas Edélson não tinha mulher, nunca falava sobre elas, não frequentava os churrascos de fim de ano e tinha um gestual excessivamente afetado. Na verdade, era de se esperar o nascimento daquela amizade, palavra que Oscar pronunciava com um velado sorriso entre gole e gole.
As verdadeiras motivações de Anselmo, no entanto, em nada se aproximavam das conotações sorridentes das quintas-feiras. Edélson era o sujeito responsável pela elaboração dos relatórios que posteriormente recebiam a revisão e aprovação de Anselmo. Cansado de semanas de orações inexpressivas com termos como usinagem, metodologia, controle, periodicidade, restrito, paletes, entre outras, decidiu, depois de alguma hesitação, procurar Edélson. Este o recebera, a princípio com desconfiança – decerto seria uma nova brincadeira de seus colegas –, mas logo viu no interesse pelos relatórios um sinal de franqueza. Assim foi que passaram a almoçar juntos e até mesmo fazer alguns serões discutindo o tema da segurança na empresa. Decidido a respeitar o seu jogo, Anselmo em momento algum tentou exercer uma influência direta sobre a escrita dos relatórios. Tinha, no entanto, a esperança de que com uma convivência mais intensa pudesse fazer com que o autor dos relatórios empregasse termos mais convenientes a seu empreendimento literário. Aos poucos, sempre respeitando a regra do jogo e sem interferir diretamente na redação dos relatórios, passou a acompanhar este processo de perto e desenvolver técnicas de contagem rápida das linhas e palavras para eventualmente sugerir tacitamente mudanças estratégicas no texto. A alta gerência, ao contrário dos maliciosos colegas, via naquela aproximação um fato muito positivo, pois qualquer esforço era válido para ampliar o recorde de sete anos oficiais sem incidentes graves – nove anos na secreta opinião de todos, que relutavam em aceitar o parecer dos auditores externos sobre a gravidade do acidente da unha. Um memorando oficial circulou reconhecendo, sem citar nomes para evitar embaraços, o empenho de alguns funcionários do setor de controle de riscos para manter os invejados índices da companhia. Carece dizer o quanto Oscar e seu novo parceiro riram na quinta-feira da semana em que circulou dito memorando dos funcionários que “demonstravam tão louvável empenho”.
Anselmo, alheio a qualquer galardão ou aos comentários, mergulhava cada vez mais no escrutínio dos relatórios e começava a sentir os primeiros resultados de sua aproximação a Edélson. Algumas insinuantes frases como “Sistemas ocultam sentido eficiência vida” davam um novo alento e indicavam que estava no caminho certo, embora ainda precisasse realizar alguns ajustes em sua técnica de contagem rápida de linhas e palavras, bem como apurar seus esforços para ampliar o vocabulário de Edélson. O acaso novamente o favoreceu e fez do aniversário de Edélson uma ocasião para dar-lhe de presente uma edição comentada com capa dura da Divina Comédia. Edélson agradeceu tentando conter embaraçosas lágrimas e explicou que era a primeira vez que um amigo lhe presenteava com um livro. A cena obviamente não escapou às conversas cada vez mais peçonhentas das quintas-feiras de Oscar, quem movido por uma enorme inveja, pois jamais ganhara um livro de Anselmo ou de amigo algum, começava já a inventar episódios pitorescos a respeito daquela amizade. Foi assim que o aperto de mão tornou-se, nas palavras de Oscar, um demorado abraço em pleno local de trabalho, que, fosse ele o gerente local, justificaria duras reprimendas.
Com o tempo, Anselmo passou a sentir que, a despeito dos grandes avanços em seus novos achados nos relatórios, precisaria tomar outras atitudes. Motivado por uma entrevista que ouvira no rádio com um grande especialista, William Pollard ou nome semelhante, quem afirmava categoricamente que se estamos insatisfeitos com o caminho não basta imaginar um novo fim, mas sim mudar o caminho, decidiu investir em algo mais drástico. Aproveitando as quietas madrugadas na empresa passou a passear munido com a cópia de alguns relatórios pelas instalações de produção. Observava minuciosamente cada uma das máquinas, verdadeiros titãs adormecidos e inofensivos na alva, à espera de que o sol saísse e se abrissem as portas da cruel arena para reluzir seus mecânicos músculos, estudando cada um de suas engrenagens. Procurou no departamento de arquivos da companhia o manual de cada uma das máquinas e passou a estudar em detalhes o seu funcionamento, dedicando especial atenção à seção de riscos e advertências de segurança. Oscar, obcecado com o comportamento cada vez mais incongruente de seu antigo parceiro de quintas-feiras, observou os livros de engenharia mecânica dispostos na mesa de Anselmo e comentou o fato na quinta-feira seguinte, sem conseguir, no entanto, tecer qualquer comentário ou ilação sobre aquele interesse repentino de Anselmo por livros que em muito escapavam a sua alçada.
Em poucas semanas Anselmo possuía um conhecimento digno de peritos sobre o funcionamento do processo de usinagem, rosqueamento, dosagem e distribuição, empacotamento entre outros elos menores da linha de produção. Agora, o passo seguinte era só uma questão de momento.

A fatalidade foi recebida com imenso pesar por todos na companhia. Alguns se compungiam pelo falecimento de um colega, outros renovavam o receio por sua própria vida, a alta gerência lamentava o fim do recorde, enquanto o financeiro e o jurídico faziam cálculos e traçavam estratégias para evitar a quebra da companhia. Anselmo em sua mesa, exaurido ao máximo, analisava o último relatório que lhe chegaria, pois a partir do próximo, todo relatório seria encaminhado diretamente ao departamento jurídico para análise dos gerentes seniores e advogados da companhia. Toda informação seria, a partir de então, tratada com elevado grau de confidencialidade. Anselmo sabia que este relatório era sua última oportunidade e o recebeu com uma excitação que espantou seus colegas, pois destoava do clima de pesar da empresa. Sem importar-se com os olhares de reproche, debruçou-se sobre o relatório mais gordo que o habitual. As primeiras perícias indicavam uma causa desconhecida que, no entanto, davam margem à hipótese de sabotagem. Não havia ainda maiores indícios, porém o óbito de um funcionário com um histórico exemplar, sem qualquer incidente de natureza alguma, quer fosse de conduta ou procedimental, fugia aos comportamentos-padrão esperados, etc., etc., a companhia de seguro já fora acionada e enviaria com máxima prioridade seus peritos para uma análise mais detalhada que pudesse fornecer evidências da sabotagem e seus possíveis autores. Corriam na empresa inúmeros rumores, sobre crime provocado pela concorrência, a possibilidade de fechamento da unidade, à chegada de um alto funcionário da matriz, demissões em massa e reestruturação de pessoal. Nada disso, no entanto, era capaz de afetar o humor de Anselmo que devorava o relatório página ímpar por página ímpar, décima primeira linha, quinta palavra, nenhuma, dor, maior, que, recordar-se, do, tempo, próspero, na, crise. Nenhuma dor maior que recordar-se do tempo próspero na crise. Nenhuma dor maior que recordar-se do tempo feliz na miséria... Os meses de árduo labor, finalmente recompensados, todas aquelas páginas preenchidas com palavras insignificantes ganhavam sentido agora, eram o estofo de uma grande obra – nem Shakespeare nem Dante poderiam o mesmo que o Acaso – e iam de uma vida espanada em que não restam mais que gestos à dor da lembrança de tempos felizes na hora da dor. Estava ali seu legado, lesse quem quisesse, entendesse quem pudesse, sua vida ganhava sentido no exato momento em que engravatados senhores de finíssimos ternos se aproximavam diante dos atônitos olhares de Oscar, Edélson, Geraldo, Elzira, Fagundes, acompanhados por dois policiais civis confusos e constrangidos. Algemas, sirenes, câmeras, flashes, notícias, incompreensão e indignação pública, um homem de vida exemplar, quais seriam suas motivações, a grande obra estava enfim escrita.

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